Rua de Cima
A Rua de Cima, em Tairu, Vera Cruz, no início dos anos 80, era uma rua que praticamente só tinha residências no lado esquerdo. Era uma rua tão boa quanto é hoje. Naquela época, havia três veranistas que se destacavam por terem residência própria e por serem grandes apoiadores dos movimentos culturais e sociais de Tairu: Professor Gouveia, Seu Jeová e Seu Antônio.
Cada um desses senhores possuía uma sólida formação e contribuía de maneira única para a comunidade.
- Professor Gouveia, letrado, era professor, escritor, com livros publicados.
- Seu Jeová, petroleiro e encarregado de plataforma, possuía ensino médio, conquistado pelo antigo supletivo.
- Seu Antônio, também petroleiro, era soldador de profissão registrada na carteira, mas na prática dominava cerca de 147 profissões, todas cadastradas, catalogadas na mente dele, com comprovações práticas.
Quando se falava em fazer qualquer evento em Tairu, podia-se contar com a opinião e o apoio financeiro desses três ilustres personagens. Eles participavam de tudo, cada um ao seu modo:
- Professor Gouveia contribuía com conhecimento, criatividade e também apoio financeiro.
- Seu Jeová e Seu Antônio traziam não só o aporte intelectual, criativo e financeiro, mas também o espírito festivo e boêmio.
Na época, havia um sambão, formado pelos jovens moradores locais. Entre eles estavam Sapatão, Edinho, Topó, Cascará, e Vilma, que era considerada a rainha do evento. Esse samba circulava de casa em casa, e eram muitas as residências que recebiam essa alegria itinerante. Como não havia muitas igrejas evangélicas na região, quase todos os moradores participavam e prestigiavam esse evento cultural.
Em uma dessas ocasiões, o samba chegou até o Entroncamento, na casa do pedreiro Manuel Bigodão. Foi lá que Seu Jeová, com a ideia de plantar um coqueiro no quintal de sua casa, resolveu junto com outro biriteiro, Lindu, o mudo, arrancar um coqueiro que estava no caminho. A árvore tinha cerca de 1,40 m de altura e, aparentemente, já estava bem enraizada. A cena dos dois tentando arrancar o coqueiro era cômica — parecia que iam “estourar a tripa gaiteira” de tanto esforço — até que acabaram desistindo, suados e exaustos, enquanto o samba já se distanciava.
Após se aposentar, Seu Antônio, que nunca foi de ficar parado, decidiu manter a vida ativa e relembrar os tempos de petroleiro e soldador. Comprou uma máquina de solda e um conjunto de oxiacetileno, prontos para pequenos serviços.
Certa vez, conversando com os amigos, ele comentou, rindo, que havia feito três serviços com esses equipamentos:
- Um foi para o próprio filho, que precisava de um conserto simples.
- Outro foi para Vaval, filho de Mestre, a quem ele soldou o quadro da bicicleta velha.
- E o terceiro, talvez o mais simbólico, foi a construção das grades da Igreja Católica, que até hoje estão lá, firmes, protegendo aquele espaço sagrado.
Com seu jeito sincero e bem-humorado, completava:
— “E olha… financeiramente, não rendeu um tostão pro bolso!”
Mais do que dinheiro, Seu Antônio carregava o prazer de ajudar, de se sentir útil e de continuar contribuindo com a comunidade que tanto amava.
Nos carnavais tradicionais de Tairu, havia o costume de jogar talco uns nos outros. Na falta do talco, usava-se maizena como substituto. Numa dessas festas, Seu Antônio terminou a noite completamente branco, parecendo um fantasma, como ele próprio dizia: “travado de cachaça”. Chegou em casa sem condições de jantar ou tomar banho. Deitou-se na cama todo “temperado” de suor e maizena e só se deu conta da situação no dia seguinte, ao acordar.
Certa vez, os jovens veranistas resolveram fazer a lavagem da ponte da praia, embalada pelo carro de som de Marco Medrado, que, na época, era candidato a deputado estadual ou federal. O povo ficou encantado com aquela novidade tecnológica, o som alto que animava a rua. Pouco depois da festa começar, chega Seu Jeová, equilibrando um grande balde pendurado em uma vassoura velha, cheio de bebida. O teor alcoólico ali era tão forte que, segundo diziam, dava para embriagar até um elefante.
O São João da Rua de Cima era simplesmente fabuloso. A rua era toda enfeitada com bandeirolas feitas pelos próprios moradores, palhas de coqueiro, e quase todas as casas tinham fogueiras acesas na porta. Havia muitos fogos, comidas, bebidas e a tradicional saudação: “São João passou aí!”. A música ia do gogó ao sambão, e, com a chegada da eletricidade, cada um queria exibir seus hits juninos nos potentes aparelhos 3 em 1, que tinham toca-fitas, toca-discos e rádio.
Durante a reconstrução da igreja local, Seu Antônio foi indicado como supervisor da obra, e sua esposa, Dona Rosa, ficou responsável pelo financeiro. Seu Antônio tinha um dom natural para coordenar, animar e motivar aquela maravilhosa equipe de voluntários — pedreiros, carpinteiros, eletricistas,ajudantes, pintores e, claro, as cozinheiras, que animadas por Dona Rosa, preparavam refeições deliciosas para todos.Enfim, o tempo passou, mas ficaram as lembranças desses três super-heróis — sem capa, sem escudo, mas com muito amor e dedicação — que marcaram a história da Rua de Cima em Tairu, Vera Cruz, dos anos 80 até 2021, quando faleceu o último deles, Seu Antônio, encerrando assim um ciclo de histórias, memórias e contribuições inesquecíveis para a comunidade.
Ass: Um Eterno Veranista.